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Meu nome é dor

Jó 1.1-5; Mt 27.46

Está na ordem do dia o tema da saúde da espiritualidade cristã. Por isso mesmo, de quando em quando, vamos dar essa nota na nossa meditação mensal. Jesus, quando estava na cruz, pronunciou palavras que expressavam o mais completo abandono. Na hora de seu grande sofrimento, na hora de sua dor maior, ele bradou do alto da cruz: “Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste”. Psicólogos, psiquiatras, filósofos, teólogos debateram ao longo do tempo essa frase mas ela sempre lhes escapou, embora uma coisa seja certa ela não é e nem nunca foi uma declaração de falta de fé. É mais a expressão dramática de uma imensa solidão, de uma terrível dor.

Deste púlpito já citei muitas vezes um dos melhores livros do século passado sobre o tema do sofrimento: “O Problema do Sofrimento”, de C.S.Lewis, um pensador ateu convertido ao cristianismo. Depois que escreveu seu livro, C.S.Lewis conheceu Joy Gresham, uma poetisa americana que estava estudando na Inglaterra. Apaixonaram-se, casaram-se, Lewis desenvolveu com ela um profundo e belo relacionamento amoroso, diferente de tudo que conhecera até então. Tragicamente, Joy veio a morrer de câncer deixando o marido inconsolável e desesperado. Foi a partir desse grande sofrimento que ele escreveu: “A anatomia de uma dor: um luto observado”. A partir de sua própria história de perda, de dor, de separação, Lewis escreveu: “Enquanto isso está acontecendo onde está Deus? Esse é um dos sintomas mais inquietantes. Quando você está feliz, tão feliz que não tem nenhuma necessidade Dele e se volta para Ele com gratidão e louvor, é recebido de braços abertos. Mas vá até Ele quando estiver em desespero, quando tudo parece ter sido em vão e o que encontrará? Uma porta fechada e o barulho de uma tranca sendo passada duas vezes, depois disso…um silêncio, um grande silêncio. Você pode ir embora.” A franqueza de Lewis nos ajuda a entender a intensidade do sofrimento e da dor. Todo mundo atravessa circunstâncias difíceis na vida. Se essas circunstâncias forem muito difíceis, há duas maneiras de sair delas: como sobreviventes ou como vítimas.

Sobreviventes são pessoas que, apesar das dificuldades e sofrimentos, mantém sua fé, mantém seu poder pessoal e podem sair vitoriosas quando surgirem as provações. Vítimas são aquelas que, a partir do que sofreram, passam a se sentir impotentes, derrotadas, fracas. Deus não nos abandona em nosso sofrimento, pois nos dá recursos para nos tornarmos sobreviventes e não vítimas. Ele promete força ao acamado e vigor ao desfalecido. As pessoas mais sábias que conheço já sofreram muito na vida, mas também é verdade que as mais amargas também já passaram por provações. O sofrimento, a dor são forças poderosas que nos empurram para uma determinada direção. Elas podem nos guiar para a maturidade e sabedoria ou para a angústia e o desespero. Não é o fato de sofrer que nos torna uma pessoa melhor ou pior, mas aquilo que fazemos com a nossa dor e com o nosso sofrimento.

A Bíblia diz que Deus nos ajuda em nossas dores, em nosso sofrimento. Isso não significa que Deus irá acabar com o sofrimento humano, mas que nos criou dotados de força e de recursos para enfrentar todo e qualquer sofrimento. Essa é a rica e misteriosa estranha história de Jó. Vamos abrir novamente a primeira página dessa história. Na primeira linha está lá o registro: “Era uma vez um homem chamado Jó”. Era um homem íntegro, um homem reto, temente a Deus. Era um homem que se desviava do mal, piedoso, justo. Era um homem honrado. Por causa disso tinha a benção de Deus em todas as áreas de sua vida, essas eram suas virtudes, suas qualidades morais e espirituais. Mas não era apenas um portador de qualidades, também era rico, muito rico, possuía dinheiro, dono de uma fortuna incalculável. Isso tudo para não falar no patrimônio, no gado, nos animais, nos camelos, nas ovelhas: era de longe o mais rico de todo o Oriente. Além disso gozava de ótima saúde. Que mais poderia desejar ou querer um homem como esse? Mas tinha mais, ele tinha família, uma grande família, uma bela família, uma família abençoada, uma das maiores bençãos que podemos almejar como família é ser uma família unida e Jó carregava a benção da família unida. Ele, a mulher e 10 filhos, 7 homens e três mulheres. E por ser uma família grande viviam sempre dando festas, celebrando a vida. Jó era o âncora da família. Não era apenas o pater familias – o pai – era também o sacerdote, o líder espiritual, cuidava para que todos vivessem em família uns com os outros e também todos com Deus. Entregava todos os dias seus filhos nas mãos de Deus: intercedia por eles, orava por eles, suplicava por eles. Jó é tudo isso, mas não vai se tornar conhecido por nenhuma dessas virtudes. A Bíblia está cheia de nomes que escondem o segredo de muitas vidas, e seu nome era Abraão, e seu nome era Jacó, e seu nome era José, Davi, Moisés, Paulo, seu nome era Maria, Isabel, Ana. Assim também seu nome era Moisés. Moisés era tudo que já dissemos mas não vai se tornar conhecido por nenhuma dessas virtudes. Jó se transformou, se tornou uma espécie de marca registrada. Assim: Jó é paciência, Jó é dor, Jó é sofrimento. Quando tinha tudo para ser feliz, uma verdadeira tragédia desaba sobre ele: perde os bens, perde os filhos, perde os trabalhadores, perde a saúde. Só não perde a mulher que assim mesmo se revolta contra Jó e blasfema contra Deus e não o ajuda em nada. Mas Jó não perde a fé. Sua dor é tão grande que é chamado de “Varão de Dores”, como Jesus em Isaías é “Varão de Dores”, mas é de Deus, por isso chega também o momento supremo: “Porventura há dor como a minha dor?” Essa a primeira grande marca da dor. Ela chega quando menos se espera, onde menos se espera, do jeito que nunca se espera e para quem menos se espera. A dor não pede licença para entrar em nossas vidas, ela não está interessada em encontrar boas razões para se justificar, é sem razão. Ela simplesmente acontece. O sofrimento, a dor têm sido e serão sempre o grande enigma da vida e da morte. Se reuníssemos todos os autores e livros do mundo sobre sofrimento e dor poderíamos dividi-los em dois grandes grupos:

1. De um lado os mais antigos, que poderíamos chamar de livros e autores clássicos. Aqui estariam incluídos John Bunyan, Martinho Lutero, João Calvino, Agostinho, sendo suas grandes marcas: A forma como aceitaram a dor, os sofrimentos como agentes úteis da graça de Deus. É como se sofrimentos fossem bisturis de Deus. Temos que descansar no amor, na providência, na lealdade, na sabedoria de Deus. Deus sabe o que está fazendo e não nos compete contestar a ação de Deus. Todos nós estamos nas palmas das mãos de Deus e Ele vai escrevendo a história de nossas vidas não nas areias do tempo que se apagam mas nos umbrais da eternidade que permanecem para sempre.

2. O segundo grupo de livros e autores já são mais modernos e fazem enorme contraste, chegando até nós. Os Gnósticos para os quais a quantidade de infortúnio, de dor, de sofrimento existente nesse mundo não combina com o ponto de vista tradicional de um Deus bom, amoroso, misericordioso, ou, então, o grupo dos que descrêem de Deus, contestam Seu poder de controlar o mal. Os gritos de desespero são gritos de protesto contra Deus: “Desce da cruz e creremos em ti.”

Onde ficamos? Em seus escritos C.S.Lewis criou uma frase que ficou famosa: “Dor: O megafone de Deus”; é uma frase mais que feliz e apropriada porque a dor realmente grita, ela avisa aos berros que alguma coisa está errada. É um megafone mas não é um megafone qualquer: É um megafone divino. Ouçamos alguns dos sons desse megafone à luz da palavra de Deus:

A dor, o sofrimento, é um fenômeno universal. Jó é o grande símbolo da humanidade e a humanidade sofre, o mundo sofre, as nações sofrem, os povos sofrem, os Estados Unidos sofrem, o Afeganistão sofre, os judeus sofrem, os árabes sofrem, os palestinos sofrem, os ricos sofrem, os pobres sofrem, os bons sofrem, os maus sofrem; somos a humanidade sofrida, somos o paraíso perdido.

A dor, o sofrimento, é um fenômeno espiritual. Há uma dor física, há uma dor do corpo ferido, há uma dor do corpo que sangra, da cirurgia que agride, do físico que reclama. Mas a dor que falamos aqui é mais que isso, é a dor da vida, é a dor da existência, é a dor de viver, de existir, é a dor de ser. Na expressão feliz e forte de Paul Tillich: “é preciso coragem para ser um coração machucado; um coração partido por uma dor lancinante não se compara à dor de viver”. Por isso não basta cuidar só do corpo, é preciso também cuidar da alma, pois, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro mas perder a sua alma?

A dor, o sofrimento, é um fenômeno pessoal. A dor tem nome, a dor tem face, a dor tem história, a dor tem endereço. Cada pessoa na face da terra carrega a sua dor. Existencialmente falando, estamos todos no mesmo barco – e não é o barco do amor – é o barco da dor – é a dor da mãe e do pai que perdem seu filho, é o filho que fica órfão prematuramente, é a dor do casal que não mais se entende, é a dor da fome, é a dor da miséria, é a dor do desamparo, é a dor dos sonhos que morreram, é a dor da moléstia incurável, é a dor de só sentir dor.

Como enfrentar o que o megafone divino tem a nos dizer? A primeira providência importante é parar com a mania de querer descobrir porque você está sofrendo. Helmut Tieliche, pastor e teólogo alemão do tempo do nazismo na Europa, empreendeu uma longa viagem através dos Estados Unidos e percebeu logo o maior defeito entre os cristãos norte-americanos: uma compreensão inadequada do sofrimento. Havia uma verdadeira obsessão em querer saber porque sofriam. O que haviam feito para suportar tamanho sofrimento e de quem era a culpa? Nessa medida somos todos amigos de Jó, preocupados mais com o diagnóstico do que com a doença. O mais importante àquela altura era sair do desespero. E esse é um milagre que só Deus pode fazer. Daí a reação de Jó: São como médicos que nada sabem, não podem curar nem confortar ninguém. Quando Deus entra no cenário e, ao invés de responder às perguntas de Jó e seus amigos, vai tão somente lembrando todas as maravilhas da natureza com palavras profundas e majestosas. Assim, Deus vai recordando:

“– Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?

-Dize-mo se tens entendimento

– Quem lhe pôs as medidas, se é que o sabes?

– Sobre que estão fundadas as suas bases?

– Ou quem encerrou o mar com portas quando irrompeu e saiu da madre?

– Quando eu pus as nuvens por vestidura e a escuridão por envoltório?

– Quando eu lhe tracei limites e lhe pus ferrolhos e portas e disse: até aqui virás e não mais adiante e aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas?

– Dize-mo, se o sabes, onde está o caminho para a morada da luz?

– E quanto às trevas qual é o seu Lugar?”

O questionário é longo. Ali está Jó, Jó sem lar, Jó sem família, Jó sem amigos, nu, cheio de úlceras, purulento e, do outro lado, Deus falando. É como se Deus dissesse: Se ignorais as coisas mínimas do universo, como podeis querer julgar a ação moral de Deus? Consciência e grandeza de todas as coisas,. Deus que tem sabedoria para reger o universo. É sábio suficiente para velar por seus filhos.

No meio da dor, a mais profunda ou mais atroz, nunca perca a esperança. Quando a dor e o sofrimento estiverem insuportáveis não tenha vergonha de chorar – vá ao jardim secreto. Jesus foi ao jardim de oração e chorou. Ali foi consolado, confortado.

Você está ferido? Está doendo? Está difícil de aguentar? Chore não a lágrima da revolta, ira, incredulidade, raiva, auto comiseração. Não, chore a dor: só as lágrimas que vêm da dor são verdadeiras. Essas o Senhor recolhe nas ânforas da eternidade.

Não aceite nunca e passivamente a insinuação de que nosso destino é sofrer, é o sofrimento, a dor. Não é nenhum carma, nenhuma fatalidade, nenhum destino inexorável.

No meio da dor, do sofrimento, tranquilize-se pois Deus está no controle. Você pode se sentir rejeitado, abandonado, pode achar que chegou o seu fim. Sem fé, você pode ficar débil, com um terrível vazio dentro de você que ameaça devorar sua esperança. Mas tudo isso não é suficiente para tirar Deus do seu trono. Deus ainda é Deus. Deus ainda é o Rei. Deus ainda é o Senhor. Quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor. Nós não podemos deter, interromper o ciclo da morte, mas Deus pode, só Ele pode. Os corações feridos e partidos que sofrem em silêncio só podem ser curados pela obra maravilhosa da graça de Deus!!! “Maravilhosa Graça”

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